segunda-feira, 21 de setembro de 2009

O Deus que eu creio

Creio no Deus desaprisionado do Vaticano e de todas as religiões existentes e por existir. Deus que precede todos os batismos, preexiste aos sacramentos e desborda de todas as doutrinas religiosas. Livre de teólogos, derrama-se graciosamente no coração de todos, crentes e ateus, bons e maus, dos que se julgam salvos e dos que se crêem filhos da perdição, e dos que são indiferentes aos abismos misteriosos do pós-morte.

Creio no Deus que não tem religião, criador do universo, doador da vida e da fé, presente em plenitude na natureza e nos seres humanos. Deus ourives em cada ínfimo elo das partículas elementares, da requintada arquitetura do cérebro humano ao sofisticado entrelaçamento do trio de quarks.

Creio no Deus que se faz sacramento em tudo que aproxima, atrai, enlaça, abraça e une – o amor. Todo amor é Deus e Deus é o real. Em se tratando de Deus, bem diz o pensador islâmico Rumî, não é o sedento que busca a água, é a água que busca o sedento. Basta manifestar sede e a água jorra.

Creio no Deus que se faz refração na história humana e resgata todas as vítimas de todo poder capaz de fazer o outro sofrer. Creio em teofanias permanentes e no espelho da alma que me faz ver um outro que não sou eu. Creio no Deus que, como o calor do sol, sinto na pele, sem, no entanto, conseguir fitar ou agarrar o astro que me aquece.

Creio no Deus da fé de Jesus, Deus que se aninha no ventre vazio da mendiga e se deita na rede para descansar dos desmandos do mundo. Deus da Arca de Noé, dos cavalos de fogo de Elias, da baleia de Jonas. Deus que extrapola a nossa fé, discorda dos nossos juízos e ri de nossas pretensões; enfada-se com nossos sermões moralistas e diverte-se quando o nosso destempero profere blasfêmias.

Creio no Deus que, na minha infância, plantou uma jabuticabeira em cada estrela e, na juventude, enciumou-se quando me viu beijar a primeira namorada. Deus festeiro e seresteiro, ele que criou a Lua para enfeitar a noites de deleite e as auroras para emoldurar a sinfonia passarinha dos amanheceres.

Creio no Deus dos radicais que abandonam tudo para se entregar a Ele. Deus da arte que desnuda o real e faz a beleza resplandecer prenhe de densidade espiritual. Deus bailarino que, na ponta dos pés, entra em silêncio do palco do coração e, soada a música, arrebata-nos à saciedade.

Creio no Deus do estupor de Maria, da trilha laboral das formigas e do bocejo sideral dos buracos negros. Deus despojado, montado num jumento, sem pedra onde recostar a cabeça, aterrorizado pela própria fraqueza.

Creio no Deus que se esconde no avesso da razão atéia, observa o empenho dos cientistas em decifrar-lhe os jogos, encanta-se com a liturgia amorosa de corpos excretando sumos a embriagar espíritos.

Creio no Deus intangível ao ódio mais cruel, às diatribes explosivas, ao hediondo coração daqueles que se nutrem com a morte alheia. Misericordioso, Deus se agacha à nossa pequenez, suplica por um cafuné e pede colo, exausto frente à profusão de estultices humanas.

Creio, sobretudo, que Deus crê em mim, em cada um de nós, em todos os seres gerados pelo mistério abissal de três pessoas enlaçadas pelo amor e cuja suficiência desbordou nossa Criação sustentada, em todo o seu esplendor, pelo frágil fio de nosso ato de fé. Texto de Frei Betto, extraído do livro "A arte de semear estrelas”. Fonte: Hermes Fernandes.

2 comentários:

Larissa Ferraz disse...

Parabéns pela postagem desse texto de Frei Betto, que, a exemplo de outros textos dele, falou muito ao meu coração. Simplesmente maravilhoso.

Arilma Feijó disse...

Não há muito o que se possa dizer sobre um texto como esse, repleto da mais linda poesia e, sobretudo, da mais inequívoca profundidade.