Ainda na adolescência, me ensinaram que eu era ruim. E que a mão de Deus estava prestes a pesar sobre a minha cabeça. A qualquer instante poderia morrer e queimar eternamente no inferno. Ainda não consigo avaliar o impacto de tamanho pavor na cabeça de um garoto, mesmo passados tantos anos. Sei apenas que abracei uma espiritualidade calcada no terror.
Alguém colocou um espelho na minha frente e disse que eu deveria ver torpeza em meus olhos tristes. Arqueei as sobrancelhas. Realmente acreditei que não prestava. Daí para frente, orei inúmeras vezes pedindo que Deus perdoasse uma “multidão de pecados”. Internalizei todos esses medos e adiei a vida.
Minha religião se construiu no negativo. Eu me contentava em cultuar a Deus apenas para celebrar a sua misericórdia. Para mim, a função do culto se resumia em pedir perdão, quitar as dívidas com a lei moral e prometer que daquele dia em diante tudo seria diferente. Na semana seguinte, obviamente, tendo tropeçado nos cadarços de minha condição humana, voltava à estaca zero. E, assim, de multidão de pecados em multidão de pecados, tropegamente, esperava que Deus não se zangasse comigo além da conta.
Tardiamente despertei. Eu havia internalizado a mensagem. Era um homem quebrado, contaminado pela desobediência de Adão e irremediavelmente torto. Adoecido, tratava qualquer virtude como trapo de imundície. Meu corpo, propenso à lascívia, me tornava um ímpio (perdoado, mas ímpio), sempre a um passo de voltar à lama.
Alegria? Só muito comedida, “para não dar lugar à carne”. Satisfação? Nos cultos, obviamente. Prazer? Poucos. Comer e dormir. Minha vida se estreitou. Deixei de ouvir boa música, não me permiti mais ler romances e passei ao largo da poesia. Catalogaram tantas coisas como abomináveis que eu preferia não me aproximar dessa lista maligna, que condenaria minha alma à perdição.
Há pouco, fui criticado porque vibrei com a saudosa Mercedes Sosa em um show realizado em São Paulo. Disseram que eu agi como um infantil, deslumbrado com um espetáculo vulgar. Não me indignei com os comentários. De fato sou um meninão. Gaguejo diante da lindeza e fico alucinado com a ressurreição de uma alegria que me foi proibida.
Na longa estrada da existência, a vida é breve. Já confessei que não me considero competente para boxear com ilustrados teólogos. Não. Minto. Na verdade, não quero estar perto deles porque meu coração tem outras sedes. Almejo aprender a joeirar os restolhos da vida e encontrar pepitas de uma beleza comum. Pretendo alongar a vista por cima da cerca de meus preconceitos, regionalismos e intolerâncias.
Procuro retardar o relógio e ler os autores que antigamente suspeitei. Fiz as pazes com Deus. Minha espiritualidade saiu do coibitivo e agora celebra a vida. Sinto-me livre, mesmo inadequado. Não regurgito remorsos e não me chafurdo em falsas culpas. Celebro a minha humanidade sem as ameaças do fogo do inferno. Ainda não esgotei, mas já entendo algumas nuanças da graça. Por Ricardo Gondim
6 comentários:
"Em vão, porém, me honram, Ensinando doutrinas que são mandamentos de homens." Marcos
7:7
É, eu também já me prendi muito por causa de leis criadas pelos fariseus, digo, pelos homens. É como Jesus disse eles não entram, e nem nos deixam entrar: "Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas! Vós fechais aos homens o Reino dos céus. Vós mesmos não entrais e nem deixais que entrem os que querem entrar." Mt 23:13
Também vejo a coisa por aí. Muitos acabaram jogando uma existência no lixo por terem ouvido e internalizado um monte de bobagem acerca da caminhada cristã. Creio que, quando Jesus disse que nós teríamos vida e vida em abundância, Ele já estava se referindo a esta vida, a este viver, a esta jornada.
Abraços e parabéns pela postagem.
Que matéria remidora!
Não só fui privilegiada com sua visita em minha página como tbm tive o fascínio extático de me identificar com o dízimo do que sua alma litarária é capaz de externar!
Grata!
Parabéns pelo blog, meu irmão.
Já li uns seis artigos. Muito abençoadores. Deus abençõe.
Soli Deo Gloria
Olá!
Antes de tudo obrigado por passar pelo meu blog. Já o estou seguindo também!
Essa reflexão do Ricardo Gomdim é muito boa mesmo. Infelizmente são muitos que são doutrinados desde a infância a se reprimirem e esconder seu medo do inferno através da máscara da religiosidade, quando deveriam é ser ensinados a celebrar a graça do perdão do Deus que se aproximou de nós quando ainda éramos pecadores.
Infelizmente também são poucos os que "saem do armário" (não sei se é boa essa alegoria) e reconhecem que têm vivido esse medo, essa religiosidade escravizante de um sistema institucional que precisa sobreviver a despeito das pessoas que dele fazem parte. Por esse sistema se faz de tudo, pelas pessoas não..., a não ser que elas sejam interessantes ao sistema. E aí entra a dificuldade de se "sai do armário" (de novo?).
Grande abraço.
Fica na paz!
Agradeço penhoradamente a reciprocidade da visita.
Que Deus continue nos abençoando.
Postar um comentário